Para além da muito mais fácil divulgação da ficção do que do documentário, este filme nasceu e vive no limbo que é a região luso-galaica, terra natal da realizadora Diana Gonçalves. Foi precisamente a sua experiência de vida o mecanismo inspirador dum fresco vivo sobre uma região definida pela vontade das gentes do Minho e da Galiza, muito para além das fronteiras geográficas e políticas.
De facto, há um rio a estabelecer os limites, (o mesmo de Entremês Famoso sobre a Pesca no Rio Minho, de Luís Galvão Teles) mas se hoje em dia é atravessado com toda a facilidade, abertas as fronteiras e sucedendo-se as pontes ao longo do rio, no período anterior a 25 de Abril de 1974, o Minho era franqueado com toda a facilidade mercê da experiência e do engenho dos contrabandistas e dos emigrantes clandestinos, muitas vezes com a complacência dos agentes da polícia fiscal dos dois lados da fronteira.
A realizadora escolheu para tema o universo fascinante do contrabando e, mais exactamente, das contrabandistas, mulheres galegas e portuguesas que passavam a fronteira nos dois sentidos e eram designadas por “trapicheiras”, por usarem a “mandrana”, uma peça de vestuário concebida para levarem a cabo as suas missões.
A emigração a salto, sobretudo com destino a França, é referida pelas mulheres durante as conversas registadas, tornando-se claro que toleravam os clandestinos e até os ajudavam, pessoas de passagem que lhes dificultavam a vida, embora muitas delas tivessem também parentes que viviam fora do país por razões de ordem política ou pelo simples desejo de não quererem combater nas colónias.
Com frequência, a vigilância da Guarda Fiscal portuguesa ou da Guardia Civil espanhola agravava-se, com instruções dos respectivos governos, em tentativas de travar vagas de jovens, sobretudo em idade militar, que não suportavam ficar no seu país e sujeitarem-se a uma guerra que ceifou tantas vidas e que não era minimamente deles.
As histórias que o grupo de mulheres protagonistas do filme conta, constituem com frequência temas para outros filmes que poderiam ser feitos e são deixados à imaginação do espectador: Diana Gonçalves assume-se uma realizadora de cinema documental e continua a militar firmemente nas fileiras deste género, tão mal-amado em Portugal quanto respeitado na Galiza.
Em Mulleres da Raia teve o cuidado de registar os testemunhos de “trapicheiras” dos dois lados da fronteira, ouvir os seus relatos umas vezes dramáticos, outros marcados pelo humor luso-galaico, e levantou o véu das desavenças e conflitos surgidos entre os dois povos, expressos nos relatos de algumas que se sentiram alvo de tratamento discriminatório pelos agentes da guarda fiscal.
O olhar lançado sobre esta época difícil em que a sobrevivência de muitas famílias dependia duma actividade ilegal atinge por diversas vezes ao longo dos 42 minutos de duração níveis difíceis de suportar, não só para os espectadores confrontados com o sofrimento das mulheres e das suas famílias, como também para as próprias protagonistas que chegam a situações limites, quando lhes é pedida a evocação de momentos especialmente complexos.
Sem nunca ceder à tentação de explorar situações em que a emoção perturba quem está no ecrã e, como é natural, quem está na plateia, a realizadora conseguiu montar as imagens de uma forma fluida que confere ao documentário um equilíbrio que fecha a porta a qualquer risco de cansaço. Para o espectador, o filme é um épico que prende a atenção, como se duma ficção se tratasse, na espera do que irá suceder a seguir, de como terminará a aventura das “trapicheiras”, as heroínas deste retrato duma região habitada por gente moldada em granito.
A utilização na narrativa de homens ligados a este mundo, um agente da guarda fiscal e um ferroviário, acentuam de forma clara o protagonismo das mulheres, numa história sobre elas e que as toca especialmente, como tem sido possível constatar em diversos pontos onde o filme foi exibido. Sem ser um filme minimamente feminista, Mulleres da Raia é uma reflexão profunda sobre as dificuldades de sobrevivência numa época, do ponto de vista dum grupo de mulheres que as sofreram duma forma muito especial.
É um documentário luminoso e bem humorado, atravessado pelo toque malandro das minhotas e das galegas, por várias vezes exibido pelas protagonistas e aproveitado muito bem pela realizadora, sem nunca cair no caricato, construindo um filme que esconde por detrás dum aparente realismo, uma cuidadosa selecção das “trapicheiras” escolhidas e da forma de recolher os seus testemunhos.
As dificuldades que se colocaram à realizadora quando preparou o seu filme, acabaram por a moldar e ao modo como conduziu as filmagens ao espírito da região e do drama que decidiu contar. Mesmo sem vocação para fugir às dificuldades, a fazê-lo de outra forma, faria muito provavelmente um filme falhado ou, no mínimo, algo completamente diferente de Mulleres da Raia.
Diana trabalhou atrás da câmara e foi auxiliada na captação de som por Miguel Barbosa, um colega que não só logrou obter uma clareza imprescindível à correcta percepção das vozes, também se encarregou da música original, outro dos factores que completam o documentário.
Se Mulleres da Raia começa com a viagem por uma estrada fronteiriça onde se torna difícil sintonizar uma estação e as línguas portuguesa e galega se sucedem, sublinhando uma divisão real entre os dois povos que nenhuma decisão governamental ou popular poderá resolver, termina com a longa caminhada solitária de uma “trapicheira” através de uma das pontes que liga as duas regiões, num passo lento e com uma expressão que encerra todo o drama de mil histórias, de que apenas uma mão cheia foi aflorada ao longo do filme.
Para trás e quase em cima do fecho, ficara a afirmação de uma mulher sublinhando que a vida se complicou com a adesão à União Europeia, responsável pelo fim dum modo de sobrevivência que alimentava a região e as suas gentes, o que por momentos parece uma ideia insólita. Mas é a conclusão natural, a remeter-nos para o facto de que qualquer facto individual ou colectivo tem sempre diversas leituras, exigindo uma profunda reflexão.
Foi precisamente isso que Diana Gonçalves fez com o documentário Mulleres da Raia e é isso que partilha com os espectadores que o têm visto.
Concordo com o seu comentário, depois de ter tido a felicidade de ver o filme ontem, na Cinemateca Portuguesa.
ResponderEliminarA estrutura do filme é muito simples: algumas mulheres raianas (que podiam ser a avó a quem a realizadora dedica o filme no final) falam da sua juventude, sem alfabetização, sem ambições, algumas «viudas de vivos» (quando na década de Sessenta os homens emigravam em massa por razões políticas e económicas) - mas com muita coragem. A coragem própria das sobreviventes, que desejo que a Diana Gonçalves seja no quadro relativamente pobre da produção nacional.
Essas falas de mulher para mulher são intermedeadas só pela máquina, porque a realizadora foi também a «directora de fotografia» - belíssima, sempre que saiu da paisagem humana para as paisagens naturais ou construídas. São documentos verídicos, já de valor histórico (para a região galega e minhota), etnográfico e linguístico. São por isso documentos a preservar, em futuro DVD, no qual gostarei de ver incluído um depoimento sobre o processo de produção e aventuras da jovem Diana, caçadora de ilusórios apoios para mostrar, mesmo de graça, o seu belo trabalho.
Há excelentes estudos publicados sobre a emigração portuguesa (lembro um dos pioneiros, António Barreto - que retomou o tema numa série para televisão) mas atrevo-me a dizer que em cerca de 40 minutos, será difícil encontrar um documentário «verista» tão poderoso e impressivo.
Documentário simples («à proporção dos meios que tinha... oferecidos pelos meus pais», dizia a Diana Gonçalves ontem) mas não simplista. Das legendas iniciais ao texto narrativo, num belíssimo e escorreito Português, tudo nos mostra que o projecto foi depurado no cadinho do amor da autora pela região em que nasceu e a cuja gente indelevelmente pertence. A narração «off» é da própria realizadora, cujo sotaque é outra das vias para penetrarmos na região.
Na pequena sessão de comentários que se seguiu à projecção, outro espectador lembrou a importância do andarilho Michel Giacometti, a quem ficamos a dever uma inestimável recolha da música popular portuguesa. A Diana Gonçalves começou pelo «microcosmos» que era a sua terra, mas como as trapicheiras heroínas da raia galega que a inspiraram, o futuro permitirá que vá encontrar memórias de outras mulheres ao longo da longa raia lusa...
Todas diferentes, e todas iguais. Mas estes retratos de mulher, simples, emotivos, verdadeiros - não podem, não devem cair no esquecimento. São Pátria ou, como devemos dizer em homenagem à Diana e às mulheres do seu filme, são Mátria portuguesa.
Concordo com o seu comentário, depois de ter tido a felicidade de ver o filme ontem, na Cinemateca Portuguesa.
ResponderEliminarA estrutura do filme é muito simples: algumas mulheres raianas (que podiam ser a avó a quem a realizadora dedica o filme no final) falam da sua juventude, sem alfabetização, sem ambições, algumas «viudas de vivos» (quando na década de Sessenta os homens emigravam em massa por razões políticas e económicas) - mas com muita coragem. A coragem própria das sobreviventes, que desejo que a Diana Gonçalves seja no quadro relativamente pobre da produção nacional.
Essas falas de mulher para mulher são intermedeadas só pela máquina, porque a realizadora foi também a «directora de fotografia» - belíssima, sempre que saiu da paisagem humana para as paisagens naturais ou construídas. São documentos verídicos, já de valor histórico (para a região galega e minhota), etnográfico e linguístico. São por isso documentos a preservar, em futuro DVD, no qual gostarei de ver incluído um depoimento sobre o processo de produção e aventuras da jovem Diana, caçadora de ilusórios apoios para mostrar, mesmo de graça, o seu belo trabalho.
Há excelentes estudos publicados sobre a emigração portuguesa (lembro um dos pioneiros, António Barreto - que retomou o tema numa série para televisão) mas atrevo-me a dizer que em cerca de 40 minutos, será difícil encontrar um documentário «verista» tão poderoso e impressivo.
Documentário simples («à proporção dos meios que tinha... oferecidos pelos meus pais», dizia a Diana Gonçalves ontem) mas não simplista. Das legendas iniciais ao texto narrativo, num belíssimo e escorreito Português, tudo nos mostra que o projecto foi depurado no cadinho do amor da autora pela região em que nasceu e a cuja gente indelevelmente pertence. A narração «off» é da própria realizadora, cujo sotaque é outra das vias para penetrarmos na região.
Na pequena sessão de comentários que se seguiu à projecção, outro espectador lembrou a importância do andarilho Michel Giacometti, a quem ficamos a dever uma inestimável recolha da música popular portuguesa. A Diana Gonçalves começou pelo «microcosmos» que era a sua terra, mas como as trapicheiras heroínas da raia galega que a inspiraram, o futuro permitirá que vá encontrar memórias de outras mulheres ao longo da longa raia lusa...
Todas diferentes, e todas iguais. Mas estes retratos de mulher, simples, emotivos, verdadeiros - não podem, não devem cair no esquecimento. São Pátria ou, como devemos dizer em homenagem à Diana e às mulheres do seu filme, são Mátria portuguesa.